"SER POLICIAL É UM SACERDÓCIO": UM DISCURSO DE DOMINAÇÃO.

Desde os meus tempos de cadete (aluno do curso de formação de oficiais), escuto que “ser policial é um sacerdócio”. Hoje, pensando a respeito, compreendi que tal frase se trata, em seus efeitos, de um discurso de dominação.

Primeiro porque, ao fazer não apenas a comparação, mas a operação de igualdade, o policial em formação passa a ser tratado como um noviço ou aprendiz de sacerdote. Isso permite a existência dos maiores abusos, próprios do exercício do poder pastoral, cuja finalidade em si é nada mais que ensinar a simplesmente obedecer. (Michel Foucault conta em seu curso Segurança, território, população, como exemplo, a estória de um monge a quem foi dada a ordem de plantar uma vara seca no deserto e duas vezes por dia regá-la. Tal ordem não tinha por objetivo a vara, mas tão somente o ensino da obediência integral).

Lembro-me então dos trotes consentidos na academia, nos quais, segundo alguns relatam, os cadetes recebiam objetos para serem cuidados como “filhos” e pelos quais eram cobrados. (havia um aluno cujo “filho” era um estojo de munição, que tinha que estar sempre com ele, durante suas atividades diárias). Em segundo lugar, a disciplina, definida pelo Manual de Ordem Unida do Exército (C-22-5) como “a obediência pronta, inteligente, espontânea e entusiástica às ordens do superior”, é sacralizada e nunca contestada, tal como um noviço que não pode contestar a autoridade de um sacerdote, pois ele é ordenado pelo próprio Deus. Tal relação de obediência não cessa com a formatura. Antes, a obediência sacerdotal será cobrada pelo resto de sua “vocação”.

Tal discurso permite ainda que o policial seja colocado em uma posição de inferioridade em relação a outras profissões. Ora, se ser policial é um sacerdócio, é justo que exija sacrifícios. E esses sacrifícios serão suportados apenas pelos “verdadeiros vocacionados”. Tal artifício discursivo permite a existência de práticas absurdas, muitas vezes não relatadas, pois, tal como o que ocorre em um monastério, os abusos fazem parte de um “segredo sacerdotal”.

Assim, creio que é preciso extirpar do meio policial a analogia do sacerdócio. Pois, como sacerdotes, os policiais são os piores, os mais mundanos entre aqueles. No entanto, se a categoria for colocada no patamar das demais profissões, poderá ser reconhecida como uma das instituições mais importantes e mais necessárias à organização do Estado Democrático de Direito e à manutenção deste mesmo sistema político. Logo, uma categoria profissional que precisa de grande valorização e atenção por parte dos governantes.



Como sugestão, penso que a oposição a ser feita em nossos discursos, especialmente aos policiais em formação, não deve ser a do policial vocacionado x policial não-vocacionado, mas a do policial profissional, técnico e honesto contra o policial sem técnica ou desonesto. Tal confronto de posturas permitiria a análise fria e a crítica do comportamento de policiais entre pares, subordinados e chefes.

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2 comentários to ''"SER POLICIAL É UM SACERDÓCIO": UM DISCURSO DE DOMINAÇÃO."

Comentarios
  1. Muito bom. Uma visão totalmente diferente de como se é preparado ao vestir a farda

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  2. "O verdadeiro desafio não é inserir uma ideia nova na mente militar, mas sim expelir a ideia antiga" (Lidell Hart)

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