SEGURANÇA PÚBLICA E RACISMO ESTRUTURAL
Você lembra ou já viu na TV, Internet ou outro meio de comunicação, alguma piada que envolva negros? Já ouviu algum ditado ou expressão que tenha relação depreciativa com negros (por exemplo, “denegrir”, significando “difamar” entre outros casos)? No último dia 20 de novembro, tivemos mais um Dia da Consciência Negra. Um dia antes, um homem negro foi morto por seguranças de uma empresa privada na cidade de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Isso mostra que o racismo envolve uma série de elementos subjetivos e objetivos da sociedade brasileira que devem ser discutidos todos os dias do ano.
Recentemente, o professor Silvio Almeida, em participação em um famoso programa de televisão, falava sobre o seu livro mais famoso, “O que é racismo estrutural?”. Em determinado momento, ele cita a falta da abordagem do tema em várias áreas, inclusive no campo da segurança pública. Se pensarmos bem, veremos que ele está correto. Embora em número crescente, ainda são poucas as pesquisas ou trabalhos que efetivamente relacionem o racismo aos órgãos responsáveis pela política criminal.
Um exemplo dessa questão é uma afirmação recente, vista em um vídeo de alguém que se dizia conhecedor da segurança pública, de que a “guerra às drogas” seria a principal causa do genocídio do povo negro no Brasil. Não é. Abdias Nascimento, no livro “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, lançado em 1978, já explicava que essa tentativa de aniquilação começa a ocorrer desde que a primeira pessoa negra foi forçada a servir como escrava no Brasil, passando depois pelos estupros das mulheres negras e, finalmente, pelo total abandono após a “abolição”, em 1888. Neste ano, milhares de negros foram “liberados” sem qualquer indenização pelos muitos anos trabalhados, pelas famílias perdidas, pelas vidas consumidas; sem nenhum cuidado ou proteção por parte do Estado. Imagina o leitor a quantidade enorme de doentes, mutilados, crianças e idosos entre eles? Imagina o prejuízo material e psicológico causado a toda essa população?
De lá pra cá, esse processo tem se acentuado, embora se torne muitas vezes disfarçado ou inconsciente. E é exatamente disso que trata o conceito de racismo estrutural. Silvio Almeida explica que “o racismo, certamente, não é estranho à expansão colonial e à violência dos processos de acumulação primitiva do capital que liberam os elementos constitutivos da sociedade capitalista”. Ao longo do seu livro, fala como o racismo, nessa história da sociedade capitalista, foi incorporado de tal forma a certas estruturas, como nas relações econômicas, no sistema judiciário, nos órgãos de governo, nos meios de comunicação e mesmo na cultura e na subjetividade, tornando-se, assim, difícil de perceber, a ponto de ser considerado “normal”.
Com algum esforço intelectual, no entanto, é possível identificar e estranhar o racismo estrutural. A falta de políticas públicas de saúde, educação, lazer etc. em áreas de periferia, é resultado desse racismo. Aliás, a própria existência dessas áreas urbanas ou rurais com infraestrutura precária é resultado dessa intencional, embora imperceptível, desigualdade histórica, fruto desse racismo.
E no caso da segurança pública? Há alguma relação? Já tratamos, em texto anterior, da relação entre racismo e segurança pública. Essa relação é facilmente percebida atualmente. Basta pensarmos que o maior número de vítimas de homicídio, bem como a maior parte dos encarcerados, são os mesmos negros abandonados das periferias. Mas isso não começa de agora. O simples fato de o Brasil ser um dos últimos países a abolir a escravismo, depois de um período de pelo menos 350 anos, já é motivo suficiente para acreditar nas marcas que ela deixou nas culturas institucionais de todos os órgãos estatais, inclusive de segurança pública. Imagine-se, por exemplo, que a polícia brasileira foi criada, segundo a historiografia oficial, em 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa. E se a abolição só ocorreu 80 anos depois dessa criação, como pensar que isso não tenha influenciado no modo de atuação das corporações?
Entretanto, se isso não é suficiente para mostrar a influência do racismo estrutural na segurança pública, trago um pequeno trecho da obra de Juremir Machado da Silva, “Raízes do conservadorismo brasileiro”. No livro, o autor mostra como alguns órgãos de imprensa, que representava as elites brasileiras, reagiu ao fim da escravidão dos negros. Segundo ele, no dia 14 de maio de 1888, “a festa ainda estava nas ruas e já o Diário do Maranhão cobrava um programa governamental repressivo contra os novos cidadãos livres do Império”. O trecho do que será reproduzido a seguir é terrível, mas ajuda a entender o problema. O jornal continuava sua campanha, dizendo que “centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho, entregando-se a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados”. Ou seja, além de terem sido abandonados sem qualquer proteção, ainda seriam perseguidos por não terem ofício, ou seja, por não terem recebido educação do próprio Estado que agora era instigado a perseguí-los.
Para finalizar, vale repetir aqui o que já foi dito em textos anteriores. Falar da presença do racismo estrutural nas corporações de segurança pública não significa chamar os seus profissionais de racistas, principalmente porque a maioria dos trabalhadores dos órgãos de segurança pública são negros, ou seja, pretos ou pardos. Explicitar o problema é dar a oportunidade de debate a todos, negros ou não, sobre a necessidade de fortalecer teorias e práticas antirracistas nesse campo, visando transformá-lo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 135.
NASCIMENTO. Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
SILVA, Juremir Machado da. Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 21.
Parabéns! É preciso sairmos do silêncio institucional e individual, não podemos nos manter indiferentes diante de um fenômeno tão violento (em suas diferentes formas) quanto o racismo. Ao ler seu texto, renovei minha esperança. Obrigada!!!
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