Contos Policiais: Ele tinha um nome
Dia comum na cidade de Fortaleza e de novo o rádio da polícia tocou. Uma ocorrência. “Mais uma ocorrência, senhor”. Comunicou o soldado ao tenente, pisando forte no acelerador.
Numa praça da cidade, um homem ensanguentado. A mão ao peito; ofegante; no rosto a careta expressando a dor, olhos arregalados como se não acreditasse que levara aquele tiro. Deve ter sido de surpresa. E não se sabe a causa. O homem estava sujo; maltrapilho, envolto numa espécie de capa fétida, que ele talvez usasse pra se proteger do frio. Os soldados meio sem saber se socorriam o homem, ou se procuravam o autor do disparo, colocaram-no na viatura e acionaram o superior.
- Senhor, é um mendigo da rua, está sangrando muito. Levou um tiro; acho que próximo ao coração.
O barulho ensurdecedor da sirene policial, a velocidade nos pneus pra tentar um socorro, e o homem atrás, agonizando a sua hora derradeira.
O comandante dando ordem através do rádio policial... “Levem com urgência ao hospital; ele disse algo? Que informação ele deu? Tentem alguma resposta!”
- Não diz nada, senhor. Não sabe dizer nada... apenas agoniza e diz: “Adonias! Meu nome é Adonias”...
- Tente mais alguma informação, pergunte se sabe quem foi... o que motivou...
E o soldado recém engajado, inexperiente ainda nas ocorrências apenas obedecia:
- Tente ficar calmo! O senhor sabe pra que lado ele foi? Era seu conhecido? Viu como era? Foi por droga?
- ADONIAS! Meu nome é Adonias. Meu nome! Adonias! Meu nome é Adonias.
No caminho, ao som da sirene, dentro de uma viatura policial, no horário do por do sol, sem parente algum por perto, o homem morreu. No bolso, algumas moedas de valor pequeno, uma foto de Santo Expedito e nenhum documento que o identificasse.
Ouvindo tudo pelo rádio, o oficial seguiu rumo ao hospital para dar encaminhamento aos processos.
Foto: Desgarrado |
- Vim fazer o procedimento, a respeito de um homem que foi assassinado hoje, chamado Adonias.
A mulher verificou a lista dos óbitos. “Senhor, não tem nenhum Adonias na lista.” A única pessoa que morreu de tiro foi um mendigo de rua, sem nenhuma identificação.
O oficial atônito diante da negação da atendente, de imediato e quase alterado, como se realizasse o último pedido do morto, reivindicou: O nome dele era Adonias! Pode botar aí. Adonias.
E o morto, depois de morto, ganhou novamente a honra de ser chamado Adonias. (Há tanto tempo não lhe chamavam assim!). E o Adonias ficou lá esperando reconhecimento de alguma criatura, que lhe trouxesse, quem sabe, uma calça nova e menos fedida, uma reza, uma flor, alguém que encomendasse sua alma.
Mas os dias foram passando e ninguém veio reclamar o corpo. E o Adonias foi enterrado como indigente, na vala comum, junto com o Geraldo, o Adalberto , o Francivânio, o Reinaldo, e a Conceição, que não tiveram tempo de dizer seus nomes. Ali na cova e juntos, só formalizaram o fato de que há muito não existiam mais. Já eram mortos insepultos e invisíveis.
Assim mesmo, como muitos, saibam que viveu em Fortaleza um homem que tinha uma praça como sua casa, morreu com um tiro não investigado, sem testemunha, sem parente, sem vela, e sem prece.
E o nome dele era Adonias.
* Conto Policial escrito originalmente na página Saracoteando
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