BELCHIOR E OS DOIS POLICIAIS

Com a notícia da morte do grande cantor e compositor Belchior, seguida das milhares de manifestações de luto e homenagens dos fãs, não tardou a surgir pessoas trazendo à tona críticas ao músico, a exemplo da acusação de que ele, ao “sumir”, teria agido como pai ausente e deixado para trás filhos sem pensão alimentícia. Houve quem explicasse o seu sumiço por esse único motivo, esquecendo os vários outros possíveis tais como o desejo de viver uma vida anônima, o desapego aos bens materiais, a crítica ao nosso modelo de sociedade, Alucinação, depressão ou outra infinidade de motivos que nunca saberemos. Para esse tipo de crítica, fica invalidada toda a história de resistência à ditadura militar, contestação dos valores da indústria cultural e a maravilhosa contribuição poética de Belchior às nossas vidas.

Belchior

Mais ou menos no mesmo período, tivemos casos de agressões cometidas por policiais em manifestações. Vi pessoas simplesmente demonizando os sujeitos das tais agressões e clamando por punição, expulsão, prisão e até morte dos indivíduos. Tais críticas tentam transformar aqueles profissionais em “monstros”, esquecendo-se que são trabalhadores que atuam com alto nível de “stress”, sob uma péssima política de segurança, mal remunerados, com pouco ou nenhum acompanhamento psicológico e que, como qualquer ser humano, cometem erros. Penso que esse tipo de crítica guarda algumas semelhanças com a injustiça feita ao nosso poeta e trovador cearense.

Sou um contumaz crítico das políticas de segurança pública deflagradas pelo Estado brasileiro, cujo caráter militarista transforma nossa polícia na que mais mata e morre em todo o mundo, e se torna mais um obstáculo para compreender o já crônico drama social que faz do Brasil um país com altíssimo nível de desigualdade social e o transforma naquilo que Darcy Ribeiro bem denominou como um “moinho de gastar gente”. Essa gente preta e pobre que morre cotidianamente seja de fome, por falta de saneamento básico ou mesmo pelo abandono do Estado em questões como a regulação das drogas tornadas ilícitas, deixando que a violência sistêmica em torno deste mercado mate milhares de cidadãos que vivem nas periferias brasileiras.

Esbravejar pedindo prisão, expulsão ou até morte de policiais que cometem erros em operações apenas dá vazão ao próprio desejo punitivo e não tem qualquer serventia para a correção dessas políticas de segurança pública. Pelo contrário, a mera individualização das condutas oculta todos os problemas da política, o que acaba tendo efeito legitimador. É por isso que Nietzsche, através do Zaratustra, ensina: “suspeitai de todo aquele em que é poderoso o pendor para punir! É gente da pior espécie”.


A realidade é bem mais dura e é preciso ser tranquilo para encará-la em análise. Não se trata de esquecer as críticas à concretude fática em questão, sempre necessárias à melhoria de qualquer serviço público, mas de ampliar as formas de análise, vendo o quadro todo. Vale utilizar os versos revolucionários do nosso “Nietzsche Brasileiro”, Belchior, para lembrar que sangue frio no “delírio da experiência com coisas reais” é necessário não apenas aos policiais que agem “cumprindo o seu duro (maldito) dever”, mas também àqueles que se propõem a debater neste campo. Há que se ter um pouco dessa “Alucinação” para suportar o dia-a-dia, afinal de contas, “amar e mudar as coisas nos interessa mais”. 





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3 comentários to ''BELCHIOR E OS DOIS POLICIAIS"

Comentarios
  1. Conexão perfeita!
    Amei seu texto!!! Música perfeita...

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  2. Fico muito feliz que exista um fio de esperança e reconhecimento... parabéns pelo estudo e trabalho.

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