O policial e o professor: uma entrevista.
O Policial Pensador reproduz uma
entrevista concedida por Anderson Duarte, policial militar no estado do Ceará e
editor deste blog. A entrevista foi realizada pelo professor da Universidade de
Santa Cruz do Sul - RS e historiador Mozart Linhares da Silva e publicada em
duas partes sob o título “polícia e violência” no jornal Gazeta do Sul.
Veja, na íntegra, a entrevista:
Professor: Por que
a polícia brasileira é tão letal?
Policial:
Temos
uma situação muito complicada no Brasil. São mais de 50 mil crimes letais
intencionais por ano, os maiores índices de homicídios do mundo, segundo dados
da Anistia Internacional. Em um contexto como este, as políticas de segurança
ainda têm sido conduzidas como se estivéssemos em guerra, de forma
militarizada. A lógica é a do confronto, da ocupação e guarda de territórios,
do aumento de efetivo de policiais nas ruas e de ações cada vez mais
militarizadas, especialmente em áreas pobres das cidades. O próprio agente da
segurança pública, o policial, passa a ter o seu trabalho precarizado. Ele não
é um trabalhador, mas um “guerreiro” em uma missão. E na guerra os soldados têm
poucos direitos. Então, o policial também é vítima, inclusive letal, dessa estratégia
de combate. Temos uma polícia que morre muito, também. Jovens entram nas
corporações com o intuito de “servir e proteger” as comunidades em que vivem e
acabam sendo empurrados para uma “guerra”. É preciso acabar com isso!
A
letalidade da polícia também tem sido legitimada por parte da sociedade
brasileira e esse é, penso eu, um dos maiores problemas da atualidade. Temos
uma mídia que lucra com a violência e que propaga, nos chamados “programas
policiais”, um discurso raso de legitimação das ações policiais mais violentas
e letais, desde que seja contra uma categoria de pessoas pobres e já pouco
assistida, denominada genericamente de “bandido”. Há, em um importante estado
do sudeste brasileiro, um deputado federal que diz que “a polícia mata pouco no
Brasil” (veja aqui). E esse discurso tem conquistado adeptos na população, infelizmente.
Ainda
bem que a cada dia cresce o número de companheiros policiais que se colocam
contra esse discurso fascista e pensam novas políticas de segurança pública,
mais adequadas a uma democracia. Poderia citar como exemplo a LEAP – Brasil
(Law Enforcement Against Prohibition ou “Agentes da Lei Contra a Proibição”,
aqui no Brasil), que tem vários agentes da lei (policiais civis e militares,
juízes, promotores etc.) que defendem o fim da “guerra às drogas”.
Professor: Como a formação do policial
é conduzida no que diz respeito aos Direitos Humanos?
Policial:
A
formação policial tem melhorado no Brasil. A Matriz Curricular Nacional foi
elaborada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) em 2003 e,
desde então, vem sendo atualizada. Ela é uma referência para os cursos de
formação e atualização de todos os profissionais que compõem o sistema de
segurança pública. Não apenas a disciplina de “Direitos Humanos” está prevista,
mas também matérias como “Ética e Cidadania” e “Diversidade
Étnico-Sociocultural”. No entanto, se as políticas de segurança não mudam e
continuam enfatizando o combate, um “currículo oculto” se forma no cotidiano e
nas práticas policiais. É a forma com a qual o policial, na prática, terá como
responder às “missões” que lhe são confiadas.
Policiais Militares da Paraíba. Formação policial foi tema de entrevista com capitão da PMPB (Veja aqui) |
Professor: Há uma tradição autoritária na formação da polícia
brasileira?
Policial:
Eu acredito que temos ainda uma cultura
autoritária e elitista na sociedade brasileira, de modo geral. Os serviços
públicos que deveriam ser oferecidos para a população com excelência no
atendimento, são prestados como um favor àqueles mais carentes. Somos uma
sociedade que se libertou da escravidão há menos de 130 anos e temos uma frágil
democracia de apenas 30 anos. Antes da redemocratização, no período da
ditadura, a polícia estava nas ruas sendo utilizada para reprimir o povo que
lutava por mais direitos e liberdades. Ainda hoje, vemos a utilização de
contingentes policiais para repressão violenta de movimentos sociais. É preciso
um trabalho ainda maior na formação dos policiais e a reorientação total das
políticas de segurança para que possamos diminuir os efeitos dessas tradições
ruins que herdamos. Além disso, a diminuição das desigualdades sociais, ou
seja, do enorme abismo existente entre ricos e camadas populares, é fundamental
para pensarmos em uma nova política de segurança.
Professor : Por que a militarização da polícia? A que serve este
modelo? Há uma cultura racista na forma como a polícia age?
Policial:
A militarização da segurança é o meio
mais fácil e barato de se gerir corporações, manter a disciplina de grandes
efetivos policiais e, ao mesmo tempo, realizar policiamento em uma grande área.
As tradições autoritárias que herdamos ao longo de nossa história e os saberes
e práticas já estabelecidos fazem com que esse modelo seja visto como
referência. Houve até um governador no Sul do Brasil que disse que um policial com
curso superior muitas vezes não aceita cumprir ordens de um oficial ou um
superior, uma patente maior (veja aqui).
Esse pensamento foi majoritário por muito tempo entre os políticos. Com
policiais menos instruídos, o autoritarismo elitista é exercido mais
facilmente.
Isso não significa que o paradigma
militar seja o mais adequado a uma democracia ou mesmo o mais efetivo para
diminuir a violência. Temos muitos policiais submetidos a escalas de serviço
desumanas, outros presos por abusos de poder de superiores hierárquicos ou
mesmo aqueles que sofreram constrangimentos ilegais e assédios morais durante a
formação, com a desculpa de treinamento para a guerra. Como consequência, uma
parte desses policiais acaba internalizando essa cultura autoritária, vendo
inimigos no interior da própria sociedade e refletindo os abusos que sofreu na
sua forma de tratar com a camada mais pobre da população. Esta, como sabemos, é
majoritariamente composta por pretos, pardos e indígenas. Vale lembrar, no
entanto, que a maioria dos policiais militares é favorável à desmilitarização
das corporações. (veja aqui).
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