Sociedade e violência: pensando sobre linchamentos

Pensar sobre linchamentos é fundamental para compreendermos o problema da segurança pública no Brasil, sua relação com o comportamento da população e seus efeitos nas políticas públicas, desde a polícia até o judiciário.  

Gostamos de nos imaginar como um povo pacífico. A imagem do “homem cordial”, utilizada por Sérgio Buarque de Holanda para descrever a “alma do brasileiro” em 1936, foi lida equivocadamente e ainda hoje é citada como sendo algo positivo. A cordialidade, embora para o autor significasse, em linhas gerais, a qualidade daqueles indivíduos guiados mais pela emoção (e pelo coração) que pela razão, foi interpretada como sendo fraternidade ou docilidade. A realidade, no entanto, é que temos uma das populações que mais lincham no mundo.

Dados retirados do livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, do sociólogo José de Souza Martins (2015), mostram que, ao longo dos últimos 60 anos, cobertos pela pesquisa, em torno de um milhão a um milhão e meio de brasileiros já participaram de ações de linchamento ou tentativas de linchamento. Foram 2.028 casos analisados, que envolvem 2.579 pessoas vitimadas por tais atos ou sua tentativa. Essas ações bárbaras são cometidas, segundo o autor (2015, p.41), quando “pacíficos transeuntes, pacíficos vizinhos, devotados parentes e pais se envolvem na execução de alguém a quem, às vezes, estão ligados por vínculos de sangue, às vezes o próprio filho”. O desprezo aos laços sociais e de sangue mostra o quão grave é este problema.

Caso de linchamento de um adolescente no bairro do Flamengo,
no Rio de Janeiro, motivou várias discussões.

É Importante destacar ainda que, do total de vítimas envolvidas nos casos estudados pelo autor, 44,6% ou 1.150 vidas foram salvas, sendo mais de 90% destes casos de salvamento operados pela polícia. Isso nos leva a pensar sobre o sério problema da violência que vivemos como realidade em nosso país. Temos uma polícia violenta, isso é fato. Dados da Anistia Internacional mostram que nossa força policial é a mais letal do mundo (veja aqui). Entretanto, em minha experiência pessoal, presenciei várias pessoas sendo presas sob gritos de populares que exigiam que a polícia os espancassem ou até mesmo os matassem. Somos o país com maior número de homicídios entre todos os demais. Isso significa, de certa forma, que não temos apenas um problema de polícia, mas de sociedade, tal como ilustram bem os casos de linchamentos.

O problema dos linchamentos no Brasil, como expõe Martins (2015, p.41), “é um desses temas reveladores da realidade mais profunda de uma sociedade, de seus nexos mais ocultos e ativos”. Na leitura desses atos de vingança irracional coletiva, própria desses rituais de violência, ficam perguntas: os linchamentos são apenas o resultado da ausência do Estado ou de deficiência de nossas políticas públicas de segurança? Ou, além disso, tais atos também falam de nossa cultura vingativa e violenta e dos modos como a alimentamos, inclusive através do Estado, permitindo que a pedagogia da violência seja a tônica de nossa sociedade?

Referências:
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro, José Olympo, 1973.

MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.


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