Explicando a meritocracia

De um modo geral, apenas conteúdos estritamente relacionados à política, polícia e segurança pública são publicados no Policial Pensador.

Entretanto, tendo em vista que nos discursos de alguns intelectuais do campo da segurança pública, atualmente, nota-se uma enorme difusão de valores como eficácia, eficiência e produtividade empresarial como norteadores para a administração das instituições públicas (alguns dizem que as polícias deveriam seguir o modelo de gestão da empresa privada), bem como a utilização do conceito de “meritocracia” como palavra de ordem e verdade incontestável para justificação de tais políticas, achei interessante trazer um pequeno trecho do excelente livro “A ralé brasileira”, do sociólogo Jessé Souza, que desmistifica um pouco a noção de “meritocracia” e a forma como é utilizada em nossa sociedade.

Meritocracia

O texto é um pouco longo, mas vale a pena a leitura:

No mundo moderno, cuja legitimidade é baseada na liberdade e igualdade de seus membros, o poder não se manifesta abertamente como no passado. No passado, o pertencimento à família certa e à classe social certa dava a garantia, aceita como tal pelos dominados, de que os privilégios eram “justos” porque espelhavam a “superioridade natural” dos bem-nascidos. No mundo moderno, os privilégios continuam a ser transmitidos por herança familiar e de classe, como veremos adiante, mas sua aceitação depende de que os mesmos “apareçam”, agora, não como atributo de sangue, de herança, de algo fortuito, portanto, mas como produto “natural” do “talento” especial, como “mérito” do indivíduo privilegiado. Existiria, no mundo moderno, uma “igualdade de oportunidades” que seria a forma de conciliar as demandas de igualdade e liberdade. Os privilégios que resultam disso não seriam “desigualdades fortuitas”, como no passado com a dominância do status de sangue, mas “desigualdades justas” porque decorrentes do esforço e desempenho diferencial do indivíduo.

Capa do livro "A ralé brasileira"
O que assegura, portanto, a “justiça” e a legitimidade do privilégio moderno é o fato de que ele seja percebido como conquista e esforço individual. Nesse sentido, podemos falar que a ideologia principal do mundo moderno é a “meritocracia”, ou seja, a ilusão, ainda que seja uma ilusão bem fundamentada na propaganda e na indústria cultural, de que os privilégios modernos são “justos”. Sua justiça reside no fato de que “é do interesse de todos” que existam “recompensas” para indivíduos de alto desempenho em funções importantes para a reprodução da sociedade. O “privilégio” individual é legitimado na sociedade moderna e democrática, fundamentada na pressuposição de igualdade e liberdade dos indivíduos, apenas e enquanto exista essa pressuposição.

O ponto principal para que essa ideologia funcione é conseguir separar o indivíduo da sociedade. Nesse sentido, toda determinação social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso tem que ser cuidadosamente silenciada. É isso que permite que se possa culpar os pobres pelo próprio fracasso. É também o mesmo fato que faz com que todo o processo familiar, privado, invisível e silencioso, que incute no pequeno privilegiado as predisposições e a “economia moral” — o conjunto de predisposições que explicam o comportamento prático de cada um de nós — que leva ao sucesso — disciplina, autocontrole, habilidades sociais etc. —, possa ser “esquecido”. O “esquecimento” do social no individual é o que permite a celebração do mérito individual, que em última análise justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas. É esse mesmo “esquecimento”, por outro lado, que permite atribuir “culpa” individual àqueles “azarados” que nasceram em famílias erradas, as quais só reproduzem, em sua imensa maioria, a própria precariedade. Como, no entanto, o social, também nesse caso, é desvinculado do individual, o indivíduo fracassado não é discriminado e humilhado cotidianamente como mero “azarado”, mas como alguém que, por preguiça, inépcia ou maldade, por “culpa”, portanto, “escolheu” o fracasso.


Caso alguém se interesse pela leitura do excelente livro, deixo o link para baixa-lo aqui.

Referência:

SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009. pp 42-43.

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